Opinião/ Como o paisagismo pode recriar um rio da Mata Atlântica em São Paulo

Anos atrás, em um sábado de manhã, perguntei para a minha filha onde ela gostaria de ir. Ela me respondeu que queria visitar um riozinho com peixinhos e floresta na cidade de São Paulo, onde moramos.
Aquele pedido aparentemente simples me levou a consultar o meu banco de dados acumulado na memória como cidadão paulistano durante toda a minha existência, buscando onde eu poderia achar o tal rio.
Pensei, pensei, e não consegui encontrar nada acessível que pudesse satisfazê-la dentro da maior metrópole do País. Todos os rios que me vinham à cabeça eram completamente poluídos: Tietê, Pinheiros, Tamanduateí… Rios que eram paraísos naturais há pouco mais de um século e hoje estão canalizados, cercados de avenidas e transformados em esgoto.
Acabamos indo para a piscina do clube mesmo, mas aquilo ficou na minha cabeça.
Passado um tempo, recebi uma grande encomenda de projeto na Cardim Arquitetura Paisagística pela incorporadora Gamaro. Tratava-se de um complexo multiuso de 38 mil metros quadrados, com torres residenciais e um edifício corporativo Triple-A no Brooklin, na zona sul de São Paulo.
No meio do projeto do empreendimento, havia uma enorme oportunidade, com uma ampla área que seria reservada para uma praça público-privada, aberta a todos.
Depois de nos reunirmos com a equipe do escritório, chegamos à conclusão de que o espaço deveria ser uma área de lazer e contemplação, com a recriação da paisagem ancestral da natureza nativa que outrora recobria aquele terreno, dentro do objetivo do que pode vir a ser a cidade verde do século XXI no Brasil, inserindo as pessoas de forma integrada na Mata Atlântica restaurada.
Mas me lembrei daquele sábado de manhã, e logo surgiu a proposta: por que não incluímos um ribeirão nesse parque de 6 mil metros quadrados, e tentamos devolver à metrópole um riozinho cristalino em meio à floresta nativa como existia no território séculos atrás?
Ideia aprovada pela Gamaro, começamos a pensar no que poderia vir a ser esse novo espaço público.
Quem já visitou a Serra do Mar, que faz parte do território da cidade, sabe que os riachos correm entre pedras arredondadas de granito com musgos e liquens, cercados por exuberante vegetação de folhagens, arbustos, árvores e palmeiras da floresta úmida, e geralmente terminam em lindas lagoas, que os antigos chamavam usualmente de “Poço das Antas”.
Entendemos que seria necessário portanto uma “arqueologia da paisagem” para recriar o espaço com o máximo de sensação de fidelidade. E não seria nada fácil, já que a maior parte do ribeirão estaria em cima de diversos pavimentos de garagens.
Para isso nos inspiramos em um ribeirão de Mata Atlântica de verdade, ainda intacto e preservado, na reserva Legado das Águas Votorantim, a apenas 80 km da metrópole.
Quando chegou o momento de concretizar o projeto foi necessário formar um consórcio com diferentes empresas especializadas na mão de obra, materiais, tecnologia e fornecimento das espécies nativas cultivadas em viveiros legalizados.
Assim, em julho de 2023, São Paulo recebeu a sua primeira recriação de um ribeirão nativo ancestral em praça pública e gratuita a todos, no Parque Gamaro, na Av. Roque Petroni Júnior, no Brooklin.
Claro que levei meus dois filhos lá, e minha grande alegria foi vê-los ajoelhados nas pedras das margens disputando uma corrida de barquinhos feitos com folhas secas na correnteza do riozinho, uma cena que poderia tranquilamente pertencer a uma outra época, de uma cidade mais gentil e de natureza preservada.
Ricardo Cardim é botânico e paisagista.