Opinião/ A farsa do Coeficiente de Aproveitamento

Sao Paulo Mapa 2
|

O Coeficiente de Aproveitamento (CA) ou Índice de Aproveitamento (IA) é um conceito comum nas legislações de uso do solo das cidades brasileiras. Ele determina, a partir da área que um terreno possui, quantos metros quadrados podem ser construídos nele. 

Ou seja:

área construída permitida = área do terreno X coeficiente de aproveitamento 

É comum a existência de dois limites, o chamado CA “básico” e o CA “máximo”. O CA básico normalmente representa um limite sem qualquer incidência de contrapartidas adicionais, enquanto o CA máximo representa a possibilidade de aumentar o potencial a partir de contrapartidas, normalmente financeiras, na forma de outorga onerosa (um pagamento feito ao município) ou “solo criado”, como ainda é chamado em algumas cidades, como Porto Alegre.

A arrecadação municipal com a venda de potencial construtivo adicional pode ser direcionada para melhorar a infraestrutura da cidade. São Paulo, por exemplo, possui um Fundo de Desenvolvimento Urbano (FUNDURB) para direcionar os recursos obtidos através da outorga onerosa. 

Verificar o CA permitido para um lote na legislação local já faz parte do cotidiano de arquitetos, incorporadores e investidores. Afinal, novos projetos de edificações só são aprovados pelas prefeituras quando respeitam esses limites. A plataforma Place faz, inclusive, estimativas de VGV a partir do CA máximo permitido em determinados terrenos de cidades como Porto Alegre, São Paulo e Recife. A existência desse coeficiente, por si, não é um problema, pois ele é útil para analisar e gerenciar o desenvolvimento urbano de uma cidade.

Porém, ao limitar a quantidade de área construída para cada lote da cidade, ele também carrega consigo um grande poder de influenciar fatores como o valor da terra, a concentração ou dispersão de pessoas no território (e consequentemente a dinâmica da mobilidade), o acesso habitacional e o desenvolvimento econômico de cada região. Ainda, a forma como esse “número mágico” é definido e aplicado no Brasil apresenta inúmeras contradições.

Diferentes formas de aplicação do CA no Brasil 

Antes do CA, era comum em cidades como Porto Alegre e São Paulo a limitação do tamanho das edificações baseado em algum critério relacionado à rua adjacente, como quanto mais larga a rua, maior o edifício permitido nos seus terrenos.

Em São Paulo, o conceito de coeficiente de aproveitamento foi introduzido pela primeira vez nos anos 1950, com o objetivo de controlar o volume edificado a depender da zona onde o lote estava.

Nessa proposta, o maior CA permitido era 8, somente na região central, mas logo foi reduzido para 6. As preocupações diziam respeito, principalmente, a um controle da estimativa de população: em teoria, a partir da área construída e da estimativa de quantas pessoas habitam cada unidade, seria possível calcular quantas pessoas ocupariam um determinado território. Apesar disso, diversos edifícios já ocupados na época possuíam um CA maior, incluindo o icônico Copan, que tem uma área construída de quase 12 vezes a área do seu terreno.

Hoje, mesmo precisando acomodar uma população quase 6 vezes maior do que nos anos 1950, com uma infraestrutura muito mais robusta e um entendimento já consolidado de que o espraiamento da população no território é prejudicial para a mobilidade e o meio ambiente, a limitação de potencial construtivo se tornou mais restritiva.

No Plano Diretor vigente, as áreas que permitem maior CA em São Paulo possuem um índice igual a 4, podendo chegar a 6 somente nos empreendimentos de habitação social. No entanto, se o que está por trás do controle do CA é um limite de densidade, não fica claro por que a exceção, que não se restringe a São Paulo, de permitir um CA maior neste caso. 

O que torna o instrumento ainda mais confuso são as chamadas áreas não computáveis, que são partes da edificação que ficam isentas do cálculo do CA.

Na Lei de Uso e Ocupação de 1975, em São Paulo, elas eram mencionadas em apenas uma frase, se referindo às ”áreas cobertas, em qualquer zona de uso, destinadas a garagens, estacionamento, carga, descarga e manobra de veículos”

Na lei de 2016, o artigo que define as áreas não computáveis apresenta mais de 20 critérios, incluindo novas possibilidades de isenção como: áreas comuns de circulação, administração e sanitários em clubes esportivos, camarins e depósitos em teatros, etc. São condições específicas que deixam o processo de aprovação de projetos complexo, e cujo embasamento técnico é difícil de entender ou mesmo justificar.

Ainda no contexto de São Paulo, o maior CA permitido hoje se aplica às zonas próximas dos eixos de transporte, numa intenção plausível de incentivar a utilização do transporte coletivo e permitir maior densidade onde haveria maior disponibilidade de infraestrutura.

Porém, em terrenos a poucas quadras das estações de metrô e corredores de ônibus, nos chamados “miolos de bairro”, o índice já cai pela metade. Na última revisão do Plano Diretor, o raio de influência desses eixos foi ampliado, mas ainda de forma pouco expressiva, passando de 600 para 700 metros para estações de metrô e de 300 para 400 metros para corredores de ônibus.

Ainda, se a questão da infraestrutura seria justificativa para ter um coeficiente de aproveitamento maior próximo aos eixos de transporte, não está claro porque os limites são 2 e 4 e não 2 e 8, ou 5 e 10, ou qualquer outra combinação de números, ou mesmo qual o critério para definição do raio de abrangência no entorno das estações.

Curitiba foi pioneira em associar o CA aos eixos de transporte, com a construção do seu sistema de BRT (Bus Rapid Transit) nos anos 1970. A intenção também era incentivar o adensamento da cidade em áreas próximas dos corredores de ônibus. Hoje, a Zona Central, onde os eixos estruturais se conectam, é a que tem o maior CA máximo, de 7, e a zona que contorna o eixo possui um CA de 6. Assim como em São Paulo, nas áreas adjacentes a essas zonas, ainda muito próximas dos corredores do BRT, como a Zona Residencial ZR4, há uma diminuição drástica do máximo de área construída permitida, com apenas 2,5 de CA.

A imagem  abaixo mostra a Zona Central em azul (CA máximo = 7), os Eixos Estruturais em vermelho (CA máximo = 6) e as Zonas Residenciais em laranja (CA máximo = 2,5).

Recorte zoneamento curitiba

 A arbitrariedade dos coeficientes de aproveitamento também fica evidente quando comparamos exemplos como Rio Verde, cidade de Goiás com 200.000 habitantes. Na sua zona central, o CA chega a 3,5, valor maior que em muitas grandes metrópoles. Porto Alegre, por exemplo, possui mais de 1.3 milhões de habitantes – quase 7 vezes a população de Rio Verde –, e mesmo com muito mais pessoas para acomodar, seu CA atualmente não passa de 3 nem nas suas áreas mais demandadas e repletas de infraestrutura.

Outra contradição está nas iniciativas, comuns em diversas capitais, de reocupação de áreas centrais mais antigas que atualmente apresentam altas taxas de vacância e ociosidade em comparação aos bairros mais novos. 

Essas áreas normalmente foram consolidadas mediante legislações anteriores que permitiam CAs maiores, como o exemplo já mencionado do Copan em São Paulo. No entanto, se a legislação atual do restante da cidade fosse aplicada aos centros com as mesmas justificativas de controle de densidade e condições de infraestrutura, o planejamento urbano estaria estabelecendo como objetivo a redução da população nessas áreas, ou pelo menos não considerando a redução de população um problema, o que vai na contramão das atuais iniciativas de revitalização.

No Porto Maravilha (no Rio de Janeiro), por exemplo, o número do CA foi definido como uma ferramenta para incentivar a revitalização da região em 2009. Foram estabelecidos coeficientes máximos de até 12, número muito acima do proposto nas outras cidades brasileiras e até em outros bairros do Rio de Janeiro atualmente. 

Nesse caso, o índice não foi utilizado como uma forma de controle, mas de incentivo para investimentos em uma área que, em sua fase de maior desenvolvimento no passado, sequer possuía esse tipo de restrição.

Na tentativa de criar uma abordagem mais convincente, a cidade de Natal, na revisão do seu Plano Diretor em 2022, buscou definir os seus coeficientes de aproveitamento com base em uma estratégia de cálculo preestabelecida. 

A capacidade de adensamento populacional em cada área foi definida pela capacidade da infraestrutura de água e esgoto, com base nas informações fornecidas pelas concessionárias. Apesar da adoção desta metodologia ser importante para reforçar que o CA não deve ser determinado de forma aleatória ou subjetiva, ela também apresenta fragilidades. 

As outras infraestruturas e serviços públicos, como o próprio sistema de transporte de massa considerado no Plano Diretor de São Paulo, foram pouco levadas em consideração para tal cálculo. Ainda, a ideia parte do pressuposto inverso da gestão urbana, de que o poder público realiza investimentos de infraestrutura em locais onde não necessariamente as pessoas gostariam de ocupar, para depois exigir a ocupação desses lugares, ao invés de criar uma rede de infraestrutura suportando a demanda do desenvolvimento urbano.

 Diante desse conjunto de exemplos, fica o questionamento: para que serve o Coeficiente de Aproveitamento, e como ele é definido? Após conversar com inúmeros representantes públicos, técnicos de planejamento, consultores com ampla experiência em urbanismo, até hoje não tivemos uma resposta convincente. 

A precificação da outorga onerosa para permitir o potencial construtivo adicional também não segue um padrão claro. O cálculo do valor da outorga em São Paulo leva em consideração a localização do terreno, o CA permitido e o uso da edificação. Em Goiânia, é considerada a localização do terreno e o Custo Unitário Básico de Construção (CUB). Em Fortaleza, a conta ainda possui um “fator de planejamento”, que representa a intenção de incentivar ou desestimular o adensamento em determinada área da cidade. Em praticamente todos os casos, não há uma relação direta com a precificação de mercado, e a venda de outorga pelo Poder Público acaba tendo grande disparidade dependendo da região de um novo empreendimento. 

Como utilizar o CA de forma eficiente

Como mostra o gráfico do pesquisador Gustavo Theil, do Insper, uma das consequências da regulação do CA é a transferência da área construída para áreas mais distantes do centro. Ou seja, as pessoas que, em um ambiente não regulado, optariam por imóveis mais próximos ao centro, não deixam de existir, elas simplesmente acabam escolhendo alternativas um pouco mais distantes.

Grafico Gustavo

A consequência desse resultado é o agravamento do espraiamento urbano, ou seja, o aumento das manchas urbanas no território que, por sua vez, geram desafios maiores de mobilidade, maiores custos de infraestrutura, dependência do automóvel, diminuição da produtividade e da qualidade de vida.

Levando isso em consideração, a definição do CA precisa estar de acordo com as dinâmicas de mercado, possibilitando mais área construída nos locais onde mais pessoas desejam estar. Ao mesmo tempo, é preciso garantir que a infraestrutura pública suporte essa demanda.

A solução apresentada no Guia de Gestão Urbana, publicado pelo Caos Planejado em 2017, é o estabelecimento de um CA básico igual a 1 (potencial construtivo igual a área do terreno) para toda a cidade, uma prática já adotada no último Plano Diretor de São Paulo. 

A partir disso, não deveria haver limite de potencial construtivo desde que haja uma contrapartida financeira adequada ao município, que a reverteria em melhorias na infraestrutura. Ou seja, o uso do CA seria exclusivamente para quantificar o tamanho da contrapartida, e não para definir um número “mágico” de quantos metros quadrados devem ser construídos em cada terreno da cidade. Uma alternativa que evitaria distorções no preço da terra seria manter os CAs básicos considerados atualmente por uma determinada cidade e simplesmente eliminar limites para o CA máximo mediante pagamento de outorga.

O valor da outorga onerosa, por sua vez, deveria seguir preços de mercado, funcionando como títulos de potencial construtivo que poderiam ser aplicados em qualquer terreno da cidade, e mesmo vendidos entre investidores e incorporadores. 

O papel do Poder Público, no caso, seria o controle da emissão de novos títulos de potencial construtivo para a cidade, a depender de fatores como a demanda pela compra do potencial construtivo, a presença de infraestrutura para a cidade como um todo receber mais empreendimentos e a própria necessidade financeira da cidade para arrecadação para determinados projetos de infraestrutura. 

Assim, não seria necessário estabelecer um CA máximo, e com uma precificação adequada da compra de potencial adicional, seria possível um equilíbrio maior entre a oferta e a demanda por espaço. À medida que a área construída numa região aumentasse, o dinheiro arrecadado pelo município para investir na infraestrutura também aumentaria, servindo como um importante mecanismo de financiamento para a cidade.

Várias cidades já se utilizam da outorga onerosa para financiar sua infraestrutura, ou mesmo da emissão de CEPACs (Certificados de Potencial Adicional de Construção) em Operações Urbanas, e os instrumentos presentes na legislação brasileira são, inclusive, referência internacional na sua aplicação. No entanto, ao não maximizar o seu potencial de arrecadação, os municípios acabam deixando de receber importantes recursos para sua infraestrutura.

O Coeficiente de Aproveitamento, na forma como é utilizado atualmente, carece de justificativas técnicas na sua regulação, sendo um instrumento arbitrário de limitação de potencial construtivo. O seu conceito merece continuar existindo, no entanto, como uma ferramenta na gestão urbana e no financiamento do desenvolvimento das cidades.

Anthony Ling é fundador do Caos Planejado.

Roberta Inglês é editora de urbanismo no mesmo site.

Ambos são arquitetos e urbanistas.

Siga o Metro Quadrado no Instagram

Seguir