Entrevista/ “As cidades deveriam ser regidas por urbanistas, não planos diretores”

Os governos deveriam dar mais autonomia urbanística para as cidades em vez de criar planos diretores ou programas habitacionais que podem se tornar obsoletos enquanto ainda estão em curso.
É o que pensa o urbanista francês Alain Bertaud, de 85 anos, que já trabalhou para a Prefeitura de Nova York e o Banco Mundial, além de ter aconselhado os governos da Índia, México, Rússia, África do Sul e China – neste, ajudando Deng Xiaoping na abertura econômica do país.
Bertaud – autor do livro Ordem sem Design: Como os Mercados Moldam as Cidades – rejeita, por exemplo, políticas voltadas para que as pessoas morem perto do trabalho, nas chamadas ‘cidades de 15 minutos.’
“Se você está procurando por trabalho, vai querer a melhor opção para aquele seu momento de vida, que pode ser diferente daqui a 10 anos. E essa é a atratividade de cidades grandes,” ele disse ao Metro Quadrado.
“Os bairros planejados são bons se você só considerar uma ida à farmácia ou ao mercado, mas não quando pensamos em trabalho.”
E rechaça também os programas habitacionais que se pretendem muito abrangentes, como o Minha Casa Minha Vida.
“É um erro toda vez que há um grupo-alvo para o subsídio que representa mais de 5% da população, porque as pessoas sempre estarão em uma fila para conseguir moradia,” ele disse.
Bertaud virá ao Brasil em agosto para participar em Porto Alegre do Encontro Cidades Responsivas, do Instituto Cidades Responsivas.
A seguir, os principais trechos da entrevista:
Como vê o Brasil em termos de urbanismo em comparação ao resto do mundo?
Em termos de infraestrutura, o Brasil está indo bem, mas a questão da habitação informal continua sendo muito importante e parece não ter sido resolvida. Não acho, por exemplo, que o programa do governo de habitação subsidiada seja uma solução a longo prazo, pois pode resolver alguns problemas de algumas famílias, mas a longo prazo a população que está na informalidade e não é subsidiada precisará ser atendida por pequenas incorporadoras. O problema é que essas pessoas não têm acesso a financiamento. Em Florianópolis, notei um desenvolvimento informal da classe média, que é uma forma de dinamismo, e mostra a diferença entre o padrão oficial do governo e o que as pessoas precisam.
Mas isso não pode promover mais favelas?
Eu não estou falando de favelas. A área do Rio Vermelho, em Florianópolis, é um assentamento ilegal de classe média. Lá são oferecidas moradias muito boas para a classe média e classe média baixa, mas é deficiente em infraestrutura, especialmente em transporte. Certamente o governo deve ter algumas moradias subsidiadas, mas é um erro toda vez que há um grupo-alvo para o subsídio que representa mais de 5% da população, porque as pessoas sempre estarão em uma fila para conseguir moradia. O governo deve relaxar um pouco e se livrar de planos diretores que acabam se tornando obsoletos enquanto estão em curso. O que as cidades precisam é de um corpo de urbanistas que as entendam. Uma cidade é como o corpo humano. Sabe quando você vai ao médico e ele coleta suas informações, te mede e te examina? Temos que fazer o mesmo pelas cidades.
Existe um jeito de promover fachadas ativas sem substituir negócios locais por grandes redes?
É muito importante uma cidade ter todos os tipos de vendedores. Na calçada de Nova York, por exemplo, há pessoas que vendem comida em carrinhos, controlados pelo governo, ao lado de um restaurante japonês muito caro, e estabelecimentos intermediários. O problema é que grandes incorporadoras tendem a procurar grandes redes, porque é mais conveniente na locação do espaço. É preciso combater isso. Não sou contra grandes redes, que são muito importantes também, mas não é bom ter uma vizinhança onde há apenas grandes redes, e inovação geralmente vem das menores lojas.
Qual lugar no mundo poderia ser uma boa inspiração nesse sentido?
Uma das melhores cidades nesse tópico é Tóquio. Na avenida principal, existem muitas lojas das grandes redes, e as ruas menores têm muitas lojinhas locais. Não estou dizendo que o Brasil precisa necessariamente imitar Tóquio, mas talvez exista outro jeito de resolver esse problema.
O que pensa das políticas para criar cidades em que tudo está a 15 minutos, como Paris tem buscado fazer?
Vejo as cidades de 15 minutos como uma distração. Quem se muda para uma cidade como o Rio ou São Paulo está procurando um trabalho, não por um trabalho a 15 minutos da sua casa. Procuram pelo melhor trabalho para aquele seu momento de vida, que pode ser diferente daqui a 10 anos. Essa é a atratividade de cidades grandes. Então, os bairros planejados são bons se você só considerar uma ida à farmácia ou ao mercado, mas não quando pensamos em trabalho. Se você não precisa de transporte, acaba criando vilas. O ideal é conseguir ir de qualquer ponto a outro em menos de uma hora usando transporte público, ou até mesmo uma bicicleta. Uma cidade feita de pequenos bairros autárquicos é o fim. Não haverá mais investimentos e seu mercado de trabalho irá colapsar, porque mercados pequenos são menos eficientes que grandes. É por isso que São Paulo e o Rio são difíceis de gerenciar.
No centro de São Paulo, 800 famílias serão transferidas no processo para construir a nova sede do governo do estado. Como isso mexe com a lógica urbanística da cidade?
Em uma cidade, o principal e mais importante não são os edifícios, mas as pessoas. Portanto, quando se mede a eficácia de algo, com 800 famílias sendo transferidas, é preciso medir se essas pessoas ficarão em melhor situação e, novamente, não em termos de moradia. Talvez elas tenham uma casa maravilhosa em algum lugar, mas será que perderão o emprego, será que poderão ter uma renda melhor lá? Provavelmente não. A mudança pode ter um resultado negativo líquido para a cidade.
E como deveria ser feito?
Se demolirmos uma favela e a transformamos em um parque, podem dizer que virou um lugar maravilhoso. Mas isso só será bom se as pessoas forem mantidas na mesma vizinhança, ou que haja um cuidado com o emprego delas. É como realocar dinheiro da educação para a construção de prisões: será bom para o PIB no curto prazo, mas péssimo a longo prazo. É a mesma coisa aqui: o critério deveria ser o bem-estar das pessoas e não a beleza do edifício.
As favelas deveriam ser substituídas por bairros planejados?
Melhorar as favelas é a melhor alternativa, porque as pessoas não pararam ali sem querer. Escolheram a localização por ser perto do trabalho e de sua rede de apoio. A ênfase deveria ser na infraestrutura: fornecer água potável, coleta de lixo, luz elétrica. E permitir acesso a empréstimos para construção. A coisa terrível nas favelas é que as pessoas só conseguem financiar suas moradias com as próprias economias.