Opinião/ Uma revolução urbanística no Rio que precisa ser protegida

Uma revolução urbanística no Rio que precisa ser protegida
|

Poucos instrumentos urbanísticos recentes têm tanto potencial de transformar o Rio de Janeiro quanto a desapropriação por hasta pública, mecanismo que incluímos no Plano Diretor da cidade em 2024. 

A Prefeitura ganhou uma ferramenta capaz de enfrentar o enorme passivo de imóveis abandonados, subutilizados ou em ruínas que há décadas degradam bairros inteiros, ameaçam a segurança dos moradores e prejudicam o desenvolvimento da cidade.

Inspirada em municípios como Mogi das Cruzes, a desapropriação por hasta pública vem justamente para combater essa realidade. O instrumento permite que o poder público, para fins de renovação urbana ou regularização fundiária, possa desapropriar imóveis para leiloá-los em disputa aberta e a valor de mercado. 

Antes do instrumento, o procedimento era mais longo e custoso: o município precisava desapropriar, indenizar, realizar o leilão e, só então, dar destinação ao imóvel. Com a hasta pública, o processo é simplificado: declara-se a utilidade pública, e o imóvel é leiloado diretamente ao mercado, sendo que o valor levantado segue para o proprietário original. 

Com isso, o imóvel abandonado deixa de ser um passivo urbano para virar moradia, comércio, serviço ou equipamento cultural. A cidade ganha vitalidade, os processos se aceleram, a litigiosidade diminui. A hasta pública tem tudo para ser uma revolução urbanística no Rio.

Mas, como todo instrumento poderoso, exige cuidado. Os primeiros sinais de distorção do instrumento já começam a aparecer, impulsionados justamente pela simplicidade e pela força que tem de destravar imóveis embaraçados. 

Uma dessas distorções é a tentativa de aplicar o instrumento para finalidades distintas daquelas previstas em lei, ou seja, fora dos casos de renovação urbana ou regularização fundiária.

É o que parece acontecer no caso do Decreto Rio nº 57.362, publicado em novembro, que tenta aplicar a hasta pública a um imóvel na Rua Barão de Itambi, em Botafogo, Zona Sul do Rio. Trata-se de um imóvel ocupado, situado em área consolidada e valorizada, que não demanda requalificação urbana nem regularização fundiária. A medida aparenta ser uma forma de interferir na venda do imóvel – atualmente em negociação para a instalação de um supermercado – por meio de um atalho procedimental que desvirtua completamente a finalidade do instrumento.

Outra possível distorção é impor ao arrematante obrigações e contrapartidas que não têm relação com a manutenção do imóvel em si, como limitar o tipo de uso, exigir a execução ou o financiamento de obras e equipamentos públicos, ou impor obrigações que deveriam ser assumidas pela própria Prefeitura.

Se esse uso se consolida, abre-se um precedente perigoso: em vez de planejar e executar as obrigações que lhe cabem, a Prefeitura poderia simplesmente desapropriar imóveis e transferir obrigações ao comprador. 

É fundamental dizer com clareza: isso não pode acontecer. E esse caminho é perigoso por três motivos:

Primeiro porque, como mencionei, deturpa o objetivo do instrumento. A hasta pública existe para promover a requalificação urbana através de novos usos promovidos pelo privado. Quando se impõe uma obrigação alheia à função do imóvel, o leilão deixa de ser um mecanismo de revitalização. 

Segundo, porque cria risco jurídico e desestimula investidores. Cada condicionante adicional reduz o número de interessados, aumenta o custo do empreendimento e pode comprometer o sucesso do leilão. A consequência? O imóvel continua ali abandonado, exatamente o oposto do que o instrumento busca combater.

Terceiro, porque abre um precedente institucional grave. Se a Prefeitura passa a recorrer à hasta pública para viabilizar procedimentos e projetos que são de sua responsabilidade, o instrumento se transforma em uma manobra ou muleta procedimental. Em vez de planejar, investir e executar, o Município poderia simplesmente desapropriar imóveis e transferir ao arrematante obrigações que lhe cabem. 

Essa lógica é ruim para a cidade, injusta para quem pretende investir e ineficiente para a política urbana.

O Rio vive um momento importante. Os primeiros editais estão saindo, os primeiros imóveis estão sendo de fato revertidos para uso produtivo. Bairros como o Centro começarão a ver a transformação.

Se queremos um Rio mais restaurado e seguro, precisamos proteger o que funciona. A desapropriação por hasta pública é, hoje, uma das ferramentas mais inteligentes que o planejamento urbano carioca já teve. Protegê-la de distorções é garantir que essa transformação não seja apenas um movimento passageiro, mas um caminho permanente para uma cidade verdadeiramente viva.

Pedro Duarte é vereador do Rio (sem partido) e presidente da Comissão de Assuntos Urbanos da Câmara; é o autor da emenda da desapropriação por hasta pública no Plano Diretor.  

 

Siga o Metro Quadrado no Instagram

Seguir