No coração de BH, um café histórico luta para não esfriar

O Café Nice — há quase 90 anos um habitat natural do cafezinho e do pão de queijo no centro de Belo Horizonte — luta para não desaparecer.
Mesmo reverenciado pela população local, o estabelecimento perdeu clientela e acumulou dívidas nos últimos anos, o que fez com que os donos Tadeu e Renato Caldeira considerassem fechar as portas.
“Todo mundo que eu encontrava lá já morreu,” me disse meu avô Waldir, de 94 anos.
No entanto, os irmãos Caldeira foram convencidos a realizar uma última tentativa: uma campanha de financiamento coletivo para reinventar e salvar o Nice.
Parte do dinheiro já foi levantado, mas o Nice ainda busca parceiros para concluir o projeto e, principalmente, clientes que voltem a dar vida ao local.
Localizado a metros da Praça Sete, no hipercentro de BH, o Café Nice foi inaugurado em 1939 e se manteve durante décadas como o grande ponto de encontro da cidade — daqueles frequentados por trabalhadores de todas as esferas e que os políticos visitam na campanha eleitoral para serem fotografados com quem passava por ali.
Mas apesar desta importância simbólica, o público foi raleando nos últimos anos.
Renato Caldeira, cuja família comprou o ponto em 1942, afirma que o local sofre com o esvaziamento do centro da cidade.
O comerciante lembra que antes era preciso ir ao centro para fazer compras, ir ao banco ou resolver pendências com o serviço público, algo que não existe mais e afetou todo o comércio da região — numa dinâmica exacerbada pela pandemia.
Com mais de 50 anos à frente do negócio e agora endividados, os irmãos Caldeira pensavam que tinham chegado ao fim da linha e consideraram vender o ponto, mas foram convencidos pelo ex-presidente da Câmara, Gabriel Azevedo, a fazer uma campanha para salvar o Nice.
Rafael Quick — artista gráfico e empresário que liderou várias requalificações de sucesso na cidade, como a transformação do antes subutilizado Mercado Novo em um point gastronômico — foi convidado para desenvolver o projeto e topou ajudar.
Logo ficou claro que o amplo reconhecimento do Nice em BH não tornaria o projeto algo trivial, Quick disse ao Metro Quadrado.
Ele nota que hoje há uma crença de que uma mera publicação nas redes sociais é suficiente para salvar um estabelecimento em crise, mas quando os problemas do Nice foram divulgados e as pessoas tentaram ir ao local, o Café não conseguiu absorver a demanda.
“Por isso resolvemos fazer um plano de comunicação, mas também de reestruturação. O que vamos fazer é um restauro, não uma gourmetização do Nice, e os donos também precisarão se atualizar para que o projeto funcione no longo prazo,” disse.
Nessa linha, a tentativa de socorro ao Nice inclui: reparos estruturais e no maquinário; contratações e ampliação do horário de funcionamento; instalação de marcenaria e painéis de fotos novos; padronização das receitas gastronômicas da casa; desenvolvimento de identidade visual e de produtos personalizados como bonés e camisetas para venda.
A campanha, que busca arrecadar R$ 280 mil, foi dividida em duas partes: foram pedidos R$ 30 mil ao público em uma vaquinha online em troca de produtos personalizados da loja, e outros R$ 250 mil a empresas que quisessem patrocinar a empreitada em troca de visibilidade.
Até aqui, o público superou a meta e doou R$ 40 mil, a Câmara de Dirigentes Lojistas (CDL BH) aportou mais R$ 100 mil e o Banco Mercantil cedeu R$ 25 mil, totalizando R$ 165 mil.
“Já iniciamos as obras, mas ainda estamos captando para conseguir executar tudo que o projeto previa. Além disso, também estamos à procura de empresas para serem parceiras periódicas do Nice, como marcas de café,” disse Quick.
Para Renato, o verdadeiro desafio começa após a captação e a execução do projeto, já que a casa precisará trabalhar para fidelizar novos clientes e sair, na prática, da situação atual.
Da porta para fora, Quick espera que a revitalização do Nice provoque um efeito cascata em outros estabelecimentos tradicionais do centro de BH e retroalimente toda a região, como já ocorreu em outras de suas empreitadas.
“É fundamental que o centro seja revitalizado, mas a conversa tem que extrapolar a esfera imobiliária. O centro ainda tem comércio forte, muitos moradores. Precisamos aproveitar o que já existe lá, e não tentar transformá-lo em outro bairro,” disse.