Opinião/ A decisão do STJ que transformou as incorporadoras em bancos

Uma recente – e surpreendente – decisão do STJ causou um enorme ruído no mercado imobiliário.
O voto da ministra Nancy Andrighi (Recurso Especial 2.106.548/SP) trouxe o entendimento de que o Código de Defesa do Consumidor deve se sobrepor à Lei dos Distratos nas rescisões de contratos de compra e venda de imóveis na planta ou lotes.
O tribunal determinou que, em caso de distrato pelo adquirente, a incorporadora deveria devolver ao adquirente 75% dos valores pagos (em outras palavras, o adquirente que distratar perderia, no máximo, 25% do valor pago). E o pior: de forma imediata.
Na prática, desconsiderou-se totalmente a penalidade específica de 50% prevista na Lei dos Distratos para empreendimento com patrimônio de afetação – ou seja, quase todos. Também foi ignorada a regra temporal prevista na Lei dos Distratos, que permitia o ressarcimento em até 30 dias após a emissão do Habite-se do respectivo empreendimento, justamente quando a incorporadora está mais capitalizada após o repasse definitivo das unidades.
A base jurídica para isso é tão singela quanto perigosa: essas previsões são abusivas aos adquirentes, com base no Código do Consumidor, cuja aplicação não teria sido afastada pela Lei dos Distratos e seguiria aplicável aos casos de incorporação e loteamento.
Na visão que prevaleceu nesse julgamento, o limite de 25% do valor total pago pelo adquirente seria “adequado para indenizar o construtor das despesas gerais e desestimular o rompimento unilateral do contrato”. Essa era, na prática, a posição que o próprio STJ estava consolidando antes da edição da Lei dos Distratos.
No caso de loteamentos, em que a própria Lei dos Distratos fixou um limite específico de 10% do valor atualizado do contrato, deve-se aplicar, segundo o STJ, o que for menor.
Em alguns trechos da decisão, fica claro um desconforto; uma certa discordância com os termos e conceitos da Lei do Distrato, muito embora ela seja uma lei federal regularmente aprovada. A bem da verdade, essa resistência em aplicar a Lei dos Distratos não é novidade. Muitos incorporadores já enfrentavam decisões judiciais contrárias a essa lei, sempre sob o argumento das penalidades serem abusivas. Mas será que são mesmo?
A Lei dos Distratos surgiu como um produto da chamada “crise dos distratos”, ocorrida sobretudo entre 2014 e 2018. O mercado imobiliário brasileiro enfrentou naquela época uma onda massiva de rescisões por adquirentes de imóveis na planta, por compradores que não conseguiram honrar os pagamentos após a crise econômica de 2014–2016, com a subida vertiginosa da taxa de juros (a níveis semelhantes aos atuais, diga-se de passagem).
Taxas de distrato dispararam e chegaram a 40% ou mais em alguns projetos, estrangulando o planejamento financeiro das incorporadoras. Isso gerou um efeito dominó negativo e, obviamente, judicialização em massa.
Nessa época, as decisões judiciais variavam ao sabor do vento quanto ao valor a ser restituído aos adquirentes e o momento. Alguns julgados obrigavam as incorporadoras a devolver 90% ou até 100% dos valores pagos, de forma imediata. Isso distorcia o risco do negócio e transferia todo o ônus da desistência ao empreendedor.
O resultado foi um ambiente de insegurança jurídica, retração de lançamentos e aumento da percepção de risco no crédito imobiliário. Algumas incorporadoras menores não aguentaram e foram à lona.
Foi nesse contexto que a Lei dos Distratos foi editada em 2018 pelo Congresso Nacional. O seu propósito central foi restabelecer previsibilidade às rescisões contratuais no mercado imobiliário, equilibrando direitos do consumidor e segurança das incorporadoras. Boa ou ruim, tínhamos um marco legal.
Agora, com essa decisão do STJ, parece que voltamos no tempo.
O ponto mais crítico é que a decisão, com olhos quase exclusivamente voltados à proteção do adquirente, ignora o desenho produtivo do mercado imobiliário. Na prática, ela acaba por equiparar incorporadoras e loteadoras a instituições financeiras, no sentido de que elas precisariam manter “reservas técnicas de capital” com alta liquidez, prontas para honrar devoluções, de forma imediata, em distratos repentinos.
No entanto, esses agentes econômicos não atuam como bancos. Seu caixa não é investido em ativos de alta liquidez; ele é investido na construção, no pagamento do financiamento à produção que geralmente é contratado nas incorporações, na geração de empregos na obra e, em última análise, no desenvolvimento urbano.
E note-se: nem mesmo os bancos têm capacidade de devolver os depósitos a todos os seus clientes ao mesmo tempo, de forma imediata – daí a razão dos bancos quebrarem quando há uma corrida dos correntistas por seus recursos. Por que com as incorporadoras deveria ser diferente? Não deveria.
Mas qual é o efeito prático disso?
Muito embora essa decisão do STJ não tenha caráter de Recurso Repetitivo, ou seja, os demais juízes e tribunais do País não estarão obrigados a observá-la ao decidir casos semelhantes, não há dúvida de que o acórdão cria um precedente perigoso, que certamente influenciará no julgamento dos casos em curso ou que venham a ser propostos. Ouso ir além: provavelmente incentivará uma maior litigiosidade.
Do ponto de vista econômico, externalidades negativas podem ser geradas. Pode ocorrer uma elevação substancial do custo de operação das empresas incorporadoras/loteadoras, “aperto” nas análises de crédito dos adquirentes e, potencialmente, se houver um momento de maior estresse econômico, uma nova “crise dos distratos”, como já vimos no passado.
Alguns adquirentes podem ser incentivados (de forma negativa) a contratar a aquisição de imóveis na planta, mesmo tendo dúvidas sobre sua capacidade de arcar com os pagamentos. Para esses, o upside é ilimitado, podendo surfar a valorização do ativo, enquanto o downside é limitado, uma vez que a restituição de 75% do preço, a qualquer momento e de forma imediata, seria “garantida”.
No limite, pode inclusive ocorrer um cenário de redução de ofertas de empreendimentos, tolhendo a livre concorrência, uma vez que os players mais capitalizados teriam mais condições de sobreviver a momentos pontuais de stress.
No âmbito da teoria de Law and Economics, decisões judiciais deveriam ponderar não apenas a maximização de proteção individual, mas também o equilíbrio setorial e social, evitando a transferência de custos sistêmicos sem análise adequada de incentivos e distorções. Isso vale para qualquer mercado, inclusive o imobiliário.
Infelizmente, não é o que aconteceu com essa decisão do STJ, que acaba por ameaçar seriamente um dos principais objetivos da Lei dos Distratos: a previsibilidade e a segurança jurídica para todos os agentes do setor, fundamentais para o funcionamento eficiente do mercado.