Opinião/ O anúncio do QuintoAndar e as barreiras da Lei do Inquilinato

O anúncio feito pelo QuintoAndar de que está encerrando a QuintoCred – a sua subsidiária responsável pela prestação de fiança profissional em contratos de locação – deixou o mercado em alerta.
Em 1942, Carlos Drummond de Andrade escreveu o seu famoso poema “E agora, José?”, expressando a angústia e a incerteza de uma época. Décadas depois, esses mesmos sentimentos atingem os proprietários e imobiliárias que terão apenas 60 dias para renegociar os 45 mil contratos ativos na plataforma para substituir (ou não) a garantia oferecida pela QuintoCred.
Embora se trate de uma decisão legítima de negócios, o timing e o curto prazo tornam o desafio ainda maior.
Em um cenário de juros altos, inadimplência crescente e incertezas na economia, o desalinhamento de interesses entre locadores e locatários em contratos vigentes certamente dificultará acordos. E o que poderia ser resolvido contratualmente esbarra em um entrave jurídico: a rigidez da Lei do Inquilinato.
O paradoxo é claro.
De um lado, uma legislação excessivamente restritiva quanto às formas de garantia locatícia. De outro, a ausência de regulação para serviços de fiança profissional, como o que agora foi descontinuado, deixando milhares em uma situação de insegurança.
O artigo 37 da Lei do Inquilinato prevê um rol fechado de garantias: caução, fiança, seguro-fiança e cessão fiduciária de cotas de fundo de investimento — esta última, nunca saiu do papel. No caso da caução em dinheiro, há limite de até três aluguéis, que devem ser depositados, ainda hoje – pasmem – em caderneta de poupança.
A cumulação de garantias é proibida, considerada nula e, inclusive, caracterizada como contravenção penal. Mesmo quando as partes desejam estruturar um pacote de garantias adequado ao perfil e risco do contrato e seus contratantes, a lei se interpõe como barreira.
Pode haver justificativa para proteger locatários vulneráveis, mas não faz sentido aplicar a mesma régua a todos os contratos. Não é razoável tratar da mesma forma a locação de uma habitação popular e a de um galpão logístico ou grandes lajes comerciais, via de regra negociadas entre empresas sofisticadas.
Esse protecionismo excessivo gera efeitos concretos: contratos de maior valor ou risco ficam sem garantias proporcionais, enquanto locações modestas exigem garantias difíceis de se obter (ou muito caras), penalizando justamente os mais frágeis. Falta calibragem, falta flexibilidade e falta reconhecimento de que a liberdade contratual deveria ser a regra e não exceção.
Essa rigidez também sufoca o empreendedorismo. Empresas com soluções inovadoras para garantias locatícias enfrentam um ambiente jurídico hostil, que dificulta sua consolidação e crescimento.
Uma exceção é a parceria entre Loft e B3, que criou o “TD Garantia”, que viabiliza o uso de títulos do Tesouro Direto como caução. A iniciativa comprova que há demanda e viabilidade técnica para modelos mais modernos — ainda que, por ora, tal novidade esteja limitada a pessoas físicas e de alcance restrito.
No campo legislativo, o cenário é pouco animador. Várias propostas tramitam no Congresso, mas algumas caminham na direção oposta — como a proibição da figura do fiador — ou fazem ajustes meramente formais aos artigos já existentes, sem inovação real ou flexibilização necessária.
A última alteração legislativa é de 2009 e fez apenas ajustes pontuais na substituição de garantias ou sua extensão até a devolução final do imóvel. Nenhuma iniciativa de reforma mais ampla do sistema de garantias em contratos de locação.
Mais do que novos incisos, o momento exige um debate sobre a autonomia privada: qual grau de liberdade contratual estamos dispostos a reconhecer nas relações locatícias? Quais segmentos merecem proteção — e quais não? O modelo atual parte da premissa de que todo locatário é vulnerável, o que não condiz com a realidade de um mercado cada vez mais diverso e sofisticado.
Iniciativas como as locações para renda (multifamily), ainda incipientes no Brasil, poderiam ganhar força com uma legislação locatícia mais flexível e moderna.
O encerramento da QuintoCred é apenas um sintoma mais visível de um sistema que envelheceu mal. O verdadeiro debate é mais profundo: trata da necessidade de diferenciar perfis, reconhecer assimetrias e atualizar o papel da lei frente à autonomia contratual.
Como já nos dizia Drummond, sempre genial: “ninguém é igual a ninguém. Todo ser humano é um estranho ímpar”.
E agora, José? Qual caminho queremos seguir?
Bruno Amatuzzi é sócio da Amatuzzi Advogados.