Opinião/ O CADE e as transações imobiliárias: uma oportunidade perdida

O CADE e as transações imobiliárias: uma oportunidade perdida
|

Na mitologia grega, Sísifo foi condenado a empurrar eternamente uma enorme pedra montanha acima. Sempre que se aproximava do topo, a pedra escorregava e voltava à base, obrigando-o a recomeçar.

A imagem de Sísifo, milenar, ainda resiste ao tempo como metáfora perfeita dos esforços bem-feitos e com intenção clara – mas que fracassam tão perto do objetivo.

No mercado imobiliário, esse foi exatamente o roteiro que o CADE seguiu no mês passado ao julgar uma consulta formal apresentada pela Bompreço Bahia Supermercados, controlada do Carrefour Brasil, sobre a necessidade de notificação prévia em operações de compra e venda de imóveis.

A expectativa do mercado era de que essa consulta fosse usada para finalmente criar balizas objetivas sobre quais transações imobiliárias deveriam ser notificadas ao CADE, e quais poderiam seguir seu curso sem a análise prévia do órgão antitruste.

Muito embora o CADE tenha sido criado para analisar operações empresariais que possam gerar concentração de mercado, nos últimos anos ele expandiu seu entendimento de “compra e venda de ativos” para incluir, também, ativos imobiliários.

Na prática, seguindo normativo do CADE, qualquer compra e venda de imóvel cujas partes envolvidas atinjam o faturamento mínimo exigido (R$ 75 milhões de um lado e R$ 750 milhões de outro, considerando os grupos econômicos) teria que passar pelo crivo do CADE, sem importar o formato do negócio ou sua finalidade.

A rede acabou ficando grande demais, abrangendo muitas transações sem risco real de concentração.

As empresas do setor passaram então a adotar uma postura defensiva, submetendo ao CADE todas as transações que atingissem os critérios de faturamento, com medo de eventual multa. Todas passavam por análise sumária e eram aprovadas sem restrições. Acaba por ser mais uma imposição burocrática.

Os custos partem dos R$ 85 mil cobrados pelo CADE a título de taxa processual – um custo alto, sobretudo diante da dúvida sobre sua real necessidade. O prazo de conclusão é a partir de 45 dias, período em que as partes não podem concluir a transação sob pena de incorrer em “gun-jumping” – a antecipação indevida dos efeitos de um ato de concentração.

Não à toa, o mercado via a consulta formulada pelo Bompreço como uma possível tábua de salvação.

A operação envolvia um imóvel desocupado, sem fundo de comércio ou atividade em curso, negociado entre empresas de mercados distintos. Um cenário comum, especialmente em aquisições para desenvolvimento imobiliário. Era a chance perfeita de o CADE se posicionar de forma definitiva e livrar o setor de um calvário burocrático.

O relator do caso, conselheiro Gustavo Augusto Freitas de Lima, apresentou um voto tecnicamente preciso, reconhecendo que, em situações como aquela, não há ato de concentração sujeito à notificação.

O parecer se baseou em critérios objetivos: imóvel sem atividade produtiva, sem transferência de capacidade instalada e sem indício de concentração. O voto foi além, delimitando outras situações importantes e trazendo objetividade ao setor.

Todos os conselheiros acompanharam o relator e defenderam a uniformização do entendimento, eliminando divergências internas e sinalizando ao mercado o caminho a seguir. A expectativa era que, diante deste consenso, fosse editada uma súmula orientativa — um instrumento previsto na regulamentação do CADE.

Mas no último momento, isto não aconteceu. Por uma decisão institucional, optou-se por restringir os efeitos do julgamento às partes da consulta. A resposta, ainda que técnica e sólida, não ganhou efeito normativo. Tornou-se um precedente isolado — lúcido, objetivo e informativo — mas sem força para orientar o restante do mercado.

A consequência foi quase imediata. Discussões acaloradas nos bastidores de grandes transações: considerar a decisão e não submeter, correndo risco? Ou seguir submetendo tudo, com os custos e prazos envolvidos? A confusão estava — e ainda está — instalada.

Em vez de promover segurança jurídica, a decisão aprofundou a incerteza. Sem uma diretriz clara e vinculante, muitas empresas seguem submetendo ao CADE operações que se enquadram exatamente no modelo da consulta — sem concentração, sem risco concorrencial, sem necessidade de controle. Tudo isso apenas para evitar o risco de uma multa, que pode chegar, no pior caso, a R$ 60 milhões.

A decisão do CADE foi, sim, um avanço técnico. O voto do relator e os posicionamentos dos demais conselheiros trouxeram clareza a um tema importante, com potencial para destravar negócios e reduzir ineficiências.

Mas ao escolher não normatizar o entendimento, o próprio órgão frustrou os efeitos práticos de seu esforço — empurrou a pedra acima com rigor e método, apenas para vê-la rolar morro abaixo por vontade própria.

Resta saber se em algum momento o CADE decidirá concluir o movimento iniciado. O entendimento já existe. O consenso técnico está posto. A necessidade do mercado é evidente. Falta apenas a disposição de transformar o esforço em norma — e libertar Sísifo de seu ciclo infinito.

Bruno Amatuzzi é sócio da Amatuzzi Advogados.

Siga o Metro Quadrado no Instagram

Seguir