Opinião/ Fachadas ativas: não jogar o bebê fora com a água do banho

Fachadas ativas: não jogar o bebê fora com a água do banho
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Nas últimas semanas, muito se tem falado sobre o alegado insucesso das fachadas ativas na cidade de São Paulo.

Parte significativa do mercado imobiliário passou a apontar a escandalosa baixa taxa de ocupação das fachadas ativas produzidas desde a aprovação do último Plano Diretor como evidência de que esse instrumento teria falhado.

Mas para contribuir de forma qualificada nesse debate, é fundamental que voltemos à letra da lei ou, ao menos, a um resumo fiel do que ela determina.

Resumo da lei: segundo a Lei de Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo (LPUOS), a “fachada ativa” é um benefício urbanístico; trata-se da possibilidade de ocupar a fachada no alinhamento do passeio público com usos não residenciais, acessíveis diretamente ao pedestre, integrando térreo e rua. Esse uso pode gerar área não computável, isto é, uma área adicional que não entra no cálculo do coeficiente de aproveitamento, funcionando como um incentivo ao empreendedor.

A fachada ativa, portanto, não é uma obrigação arbitrária, mas sim um benefício oferecido pelo Plano Diretor, cujo objetivo é estimular a vida urbana, fortalecer a relação entre edifício e calçada e produzir melhores ambientes na cidade.

Com a alta competitividade por terrenos em São Paulo, o empreendedor naturalmente busca utilizar todos os instrumentos disponíveis que ampliem a área privativa e o valor geral de vendas (VGV).

Mas nem sempre esse movimento vem acompanhado de reflexão sobre as especificidades de cada tipo de uso — residencial, não residencial, que podem ter inúmeras formas de existir — ou sobre as exigências próprias do uso do térreo na relação com a rua.

Loja de rua tem características específicas definidas pela própria demanda do mercado: exige vocação, entendimento do varejo e capacidade de desenhar espaços que realmente funcionem.

O insucesso apontado hoje está muito mais relacionado ao desinteresse de parte do mercado em produzir áreas térreas compatíveis com a demanda real do varejo do que a qualquer imposição legal. Não há falha do instrumento urbanístico: há falha de produto.

Programa na rua é vida de rua. Vida de rua é segurança pública. Nesse sentido, o incentivo do Plano Diretor é assertivo e necessário, integra edificação e pedestre, ativa calçadas e ajuda a construir cidades mais dinâmicas.

A Planta, que completou cinco anos este ano, já produziu nove edifícios distribuídos pelo centro expandido de São Paulo e tem ainda mais seis em produção, todos fazendo uso consistente do benefício da fachada ativa em seus retrofits. E ao contrário da narrativa dominante, temos observado grande sucesso na ocupação desses espaços.

O edifício Renata Sampaio Ferreira é um exemplo emblemático. Onde antes havia uma agência dos Correios cercada e vazia, hoje encontramos um café com livraria durante o dia, um restaurante prestes a abrir para almoço e jantar e o bar Lágrima, um listening bar que se tornou ponto de referência no centro.

Em outros projetos, trouxemos restaurantes para os térreos, como o HM Café, no edifício Bianca, na Joaquim Eugênio de Lima, que atende tanto ao público do prédio multifamily quanto à rua. Mais recentemente, nos Jardins, na esquina da Barão de Capanema com Ministro Rocha Azevedo, inauguramos a Galeria Fortes D’Aloia & Gabriel, uma das mais relevantes do País, que abriu as portas antes mesmo da conclusão da obra, movimentando a calçada e demonstrando o desejo do setor cultural de ocupar espaços voltados ao pedestre.

Por natureza, mas também por falta de atualização cultural, o mercado tenta extrair o máximo dos incentivos colocados pelo Estado, muitas vezes, como é o caso dos prédios aprovados como HMP e HIS, deturpando o propósito original do incentivo.

Os incentivos são assertivos, mas precisam dar conta de ser aplicados na prática, sem cair nas armadilhas do mercado imobiliário antigo, que ainda parece manter o espírito ultrapassado do pós-guerra de reconstrução a qualquer custo, sempre sedento por se multiplicar e prosperar apesar das consequências. Não podemos jogar o bebê fora com a água do banho.

Enquanto a parte ultrapassada do mercado insiste em tratar o benefício como se fosse obrigação, preferindo culpar a lei por seus próprios fracassos programáticos, nós seguimos acreditando que cidades melhores se fazem com bons programas de rua. E para produzi-los, é fundamental saber vocacionar, dimensionar e qualificar os espaços destinados à fachada ativa.

Além de uma curadoria atenta às tendências do mercado, é necessário precificar corretamente esses novos lugares, que estão hoje em processo de “place making” e, portanto, merecem ser objeto de indução por aluguéis mais módicos até que se tornem espaços maduros — prática comum em diversas cidades.

Só assim podemos construir uma cidade mais segura, mais divertida e, quem sabe, até mais diversa, com diferentes classes sociais convivendo nas calçadas e compartilhando o espaço urbano. É esse atrito, essa presença simultânea, que transforma a cidade na maior ferramenta de mobilidade social que a humanidade já produziu.

Guil Blanche é fundador e CEO da Planta.

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